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Para o observador estrangeiro, a cidade escandinava de Lärkanshem é pequena e irrelevante. Sua área inteira cabe duas vezes em Manhattan, e sua população é só um quarto dos moradores de Rio Branco. Nem mesmo historiadores têm muito interesse nesse pacato pedaço de terra no extremo norte do planeta.

Porém, tal insignificância jamais foi preocupante aos seus moradores. Se o mundo os ignorassem, eles simplesmente ignorariam o mundo de volta. Do ponto de vista daquela cidade, a disputa nupcial dos vizinhos na madrugada era mais interessante que aquela entre países.

O que isso significa, é que os pequenos momentos interpessoais que as cidades grandes deixam passar despercebidos, são estrelas do show em Lärkenshem. E o caso de um tal alce, Inge, e seu amigo caribu, Kjell, foi uma vez o espetáculo da temporada.

Do jardim de infância ao ensino médio, os dois cresceram juntos e próximos. Porém, após sua graduação, Inge decidiu romper com as tradições locais e saiu para uma faculdade na capital. Kjell não concordara, mas isso não o impediu de seguir com a sua vida.

Pelos quatro anos seguintes, os dois — e seus outros amigos — mantiveram uma relação boa pela internet. Inge até vinha passar as festas, e todos saiam e se divertiam como se nunca tivessem crescido.

Depois de tanto tempo, o alce retornou para gerenciar a padaria dos pais e, para o choque de todos, uma nuvem de inimizade encobria os cervos quando estavam juntos. 

Por um motivo inexplicável, quando estavam cara-a-cara, uma insuportável frustração preenchia suas mentes. Confusos e irritados, eles recorriam a ataques verbais para satisfazer o sentimento. A troca de palavras bobas, mas doloridas, se tornara tão frequente, que o resto do grupo se recusava a sair com os dois ao mesmo tempo.

E, apesar de tudo, eles continuavam amigos. Conversar em grupos ou em particular pela internet continuava prazeroso e cordial. Então, por quê ver o outro lhes causava tanta angústia? Numa certa noite de sábado, eles descobriram.

Já eram sete da noite naquele dia invernal, e em Lärkanshem, isso significa agasalhos pesados, aquecedores a gás, tempestades de neve e álcool, muito álcool.

Exausto de um dia lidando com as finanças da padaria, Inge — já desanimado com toda aquela neve, mas determinado a não deixar todo aquele tempo ir pro espaço — caminhava em direção a seu bar favorito. Quando avistou a placa neon entre sua touca e echarpe, apertou o passo para fugir daquele inferno gélido.

A porta abriu e as cores do mundo inverteram. O desolado azul escuro tornou-se um laranja aconchegante povoado por uma abundância de pessoas e garrafas. O jovem alce pulou de seu sobretudo e desfez seu cachecol antes de tomar um momento para apreciar o ar aquecido do local.

Ele não tinha planos de encontrar ninguém; poucos ali tinham. Na cidadezinha, era costume entrar num bar e vagar entre as mesas e bancos até encontrar um grupo vagamente familiar para passar a noite fria. E não demorou para Inge encontrar um grupo que o acolheu com gritos animados e canecas de cerveja.

O tempo passou suavemente naquela mesa. Uma reclamação ali, uma discordância lá, mas o clima continuava contente e tranquilo. Muitos minutos — e copos — depois, Inge observou uma figura chifruda aproximando a mesa. Quando o resto da mesa avistou o cervo aproximando, murmúrios chateados encheram suas bocas. Sem dúvida, era Kjell.

Um poderoso peso caiu sobre todos os amigos quando o caribu chegou perto da mesa. Todos observavam os dois veados em silêncio absoluto, esperando qual reação a dupla teria.

Dentro de Inge, aquele mesmo sentimento irritante e incompreensível borbulhava. Ele poderia facilmente começar uma briga ali mesmo, porém, bebida e pressão social mudaram sua ideia.

A cara séria do alce desabou num sorriso. “Porra, tu tá atrasado, hein!"

Sua voz quebrou a concentração de todos, fazendo-lhes cair em risos aliviados.

"Ha," o outro cervo respondeu estendendo sua mão para Inge, “é que alguns de nós têm trabalhos de verdade. Você não entenderia."

O rapaz não hesitou em apertar a mão de volta. “Arrã, sei," ele disse enquanto puxava seu amigo para um assento.

Horas passaram. Entre conversas bem-humoradas e canecas de cerveja, nenhum dos dois sentia vontade de expelir aquela irritação. Naquele breve momento, os dois retornavam à simples amizade de suas infâncias.

Porém, nada disso abafou a frustração dentro deles. Por seus olhos turvos e embriagados, Inge via a forma do caribu de maneira afetiva e hostil. Da maneira que Kjell sorria, aos ajustes que ele fazia ao seu penteado, e até ao suave cheiro único do rapaz, tudo evocava atração e repúdio.

Quem era aquele rapaz para Inge? Ele mesmo não sabia mais responder. Melhor amigo, amigo de infância, irmão de outra mãe, nada soava certo na mente do alce.

O álcool fluia contra a gravidade, em direção ao seu cérebro. Todos seus pensamentos diluíam e misturavam-se de maneira confusa. Aquele amigo de tão longa data era simultaneamente belo e grotesco, amável e irritante, acolhedor e agressivo.

Uma claridade atingiu sua mente bêbada: a origem de sua frustração era justamente aquela divergência. Não compreender aquela pessoa que ocupava tanto sua mente tornava a presença dele insuportável. Ver Kjell e não entendê-lo, isso causava irritação.

A revelação que Inge tivera naquele bar, naquela noite de inverno, ficaria marcada para sempre em sua memória… porque ele estava prestes a estragar a coisa toda.

“Cara," disse o alce ao caribu, quebrando um momento de silêncio na mesa, “tipo, qual é a tua?"

In vino veritas. A embriaguez lhe trouxe esclarecimento à mente, mas letargia ao corpo.

Todos viam Inge por olhos cheios de dúvidas. Houve um momento onde todos olharam para o outro cervo, imaginando que ele tivesse alguma ideia do que diabos seu amigo falava. Para o desânimo do grupo, o cervo tinha a mesma confusão na cara.

Kjell meneou a cabeça. “Mas o quê?"

O raciocínio de Inge rodopiava, impedindo que frases mais coerentes saíssem de sua boca. “Tipo… sabe? Eu não te entendo, mano, sei lá."

“Ah, é?" O caribu viu sua frustração borbulhar mais uma vez e, graças à sua própria falta de sobriedade, deixou uma gota escapar seus lábios. “Tente pensar antes de falar, então."

Entre risos da mesa, o alce rangia os dentes num desgosto envergonhado. Ele decidiu naquele momento: educação e cortesia que se danassem, sua mensagem seria transmitida.

“Eu já pensei o suficiente, seu idiota," Inge disse, alterando o clima da mesa. “Pensei no jeito que você tem sido um babaca desde que eu voltei! Qual é o seu problema, hein?"

Murmúrios desapontados inundaram a mesa enquanto Kjell olhou para a feição fria do rapaz. Ali, viu uma licença para liberar as emoções que ferviam dentro dele desde o início do encontro.

“Babaca? Eu?" o caribu disse. “Eu estou perfeitamente bem! Quem está estranho é você, seu maluco!"

"Aí! Você tá fazendo de novo! Qualquer coisinha que eu falo você explode! O quê é você tem contra mim, hã?"

O caribu tremia de incômodo. Em seu pelo, sentia olhos curiosos e julgadores do bar inteiro. O instinto local de cuidar da vida dos outros tinha despertado com força. Mas nem isso importava, as palavras de Inge importavam bem mais naquela ora.

"Você quem veio pra cima de mim primeiro," disse Kjell. "Eu não tenho nada contra você! É sempre você quem explode contra mim, seu panaca!"

"Como é!" Inge gritou enquanto se levantava de seu assento. "Você acabou de me humilhar e tem a audácia de falar isso? Se enxerga!"

Kjell levantou logo depois. "Você quem falou aquelas asneiras sem sentido lá! Fala direito e eu te respondo."

"Ok, então." O alce se aproximou do seu amigo e pôs seu indicador no peito do caribu. "Vou te dizer claramente agora e você vai me responder."

"Show. Sou todo a ouvidos."

Aí, silêncio. A bravata que havia levado Inge até aquele ponto se dissipava, deixando suas bochechas coradas. A claridade o atingiu em cheio; naquela ora, ele podia dizer o que sentia e ser humilhado, ou poderia mandá-lo “tomar no cú" e continuar naquele frustrante jogo de tênis emocional.

Ele estava prestes a seguir com a segunda opção quando um detalhe tomou sua atenção. Ele viu no fundo dos olhos de seu amigo, seus próprios olhos. Inge descobriu ali que ambos carregavam a mesma irritação. As mesmas dúvidas e os mesmos medos o refletidos de maneira acusatória e inocente.

Na descoberta, o fogo criado pelo álcool enfraqueceu até a fúria sumir da face do alce. Só o caribu estava perto o suficiente para ver a transformação, e assim que a notou, sua própria expressão abrandou.

“Eu não aguento mais," disse Inge meneando a cabeça. “Você me odeia, Kjell?"

O outro cervo ruborizou ao ouvir as palavras. “Hã?"

“É porque eu te deixei né? Eu sempre soube que você não queria que eu saísse da cidade… ignorei seus sentimentos."

Houve outro momento de silêncio enquanto a audiência atentamente esperava a resposta do rapaz. 

Ao ver aquelas sinceras palavras, embriaguez e irritação evaporaram do rosto ardente de Kjell. Sua mente ainda não estava completamente clara, mas não havia tempo para pensar, ele tinha que responder; Inge estava esperando.

As mãos do caribu pegaram pegaram cada lado da cabeça do seu amigo, e forçadamente juntou suas testas — quase como um golpe.

“Escuta aqui," disse o rapaz com visão focada nos olhos do amigo. “Eu não te odeio. Você é o meu melhor amigo, porra! E você me dizer uma coisa dessas dói pra caralho!" Ele sentiu suas emoções transbordarem nos seus olhos, mas continuou normalmente. “Mas, eu entendo. A culpa é minha, né? Eu fui um babaca mesmo… Me desculpa, Inge."

O alce, também de olhos molhados, respondeu com um sorriso trêmulo. “Nada disso! Eu tenho que te pedir desculpas."

“Ha! Que tal nós dois admitirmos que fomos babacas e ficarmos por isso mesmo."

“Hehe, pra mim tá bom." 

Inge viu, pela primeira vez em muito tempo, seu amigo sem a sombra de frustração; como ele era bonito. Ah, ele deveria ter imaginado. Esse tempo todo, ele queria entendê-lo não só porque Kjell era seu amigo, não porque eles se conheciam há tanto tempo, nem porque ele era como um irmão. Seu verdadeiro sentimento era romântico o tempo todo.

Mas aquela não era a ora. “Um passo de cada vez," ele pensou. Naquela noite eles tinham se livrado de um peso no seu relacionamento. Eles teriam tempo para lidar com isso depois. 

“Ei," Inge disse, limpando as lágrimas fujonas de Kjell com os polegares, “chora não. Você fica feio chorando."

Um curto riso e o alce estava mais que pronto para retornar à bebedeira, contente em saber que aquela noite não terminaria em mais terríveis discussões. 

Ele sentaria, as cortinas fechariam, e a plateia voltaria para suas respectivas vidas, felizes de ter visto um final satisfatório. Porém, ele havia esquecido: histórias de romance terminam num beijo!

Um movimento súbito, iniciado pelo caribu ruborizado — e pela liberdade que só a embriaguez dá — colou os lábios dos dois cervos. Incontáveis e coordenados suspiros de surpresa os rodearam enquanto Inge ainda processava a situação.

O marasmo de Inge não durou muito; ao entender que era beijado por Kjell, ele não hesitou em retribuir. Bêbados e inexperientes, o simples toque cresceu a um estalo babado e selvagem. Ganância e sede, como nenhum dos dois sentiu antes, mandavam nas suas mentes.

Ofegantes, eles partiram os lábios deixando uma ponte saliva que se dissipou enquanto olhavam nos olhos do outro. O ar envolta deles parecia quente. Mais um pouco, e eles fariam mais do que só beijar…

“Ei!" Uma voz do meio do público gritou. “Vão arrumar um quarto logo, vocês dois!"

O bar inteiro entrou numa erupção de risadas, e os dois cervos coraram em resposta. O par tentou voltar para seus lugares, mas um novo problema surgiu: no amasso, suas galhadas ficaram presas.

Eles tentaram desatar pela força, mas isso não resolveu nada. Vergonha tomou seus rostos brevemente, mas logo os dois caíram na gargalhada que os rodeava. Só com a ajuda de outro cervo no bar, eles conseguiram se livrar.

O resto da noite seguiu bem tranquilamente depois daquilo. A roda — e todo o bar — continuava na bebida e na conversa enquanto os veados trocavam olhares e sorrisos nos momentos mais quietos. 

Era quase uma da manhã quando eles decidiram voltar para casa. A neve não mais corria como tiro, mas pairava calmamente. Alce e caribu andavam lado a lado com caras ruborizadas e mãos soldadas.

Enfim, chegaram no ponto onde seus caminhos separavam, e isso, claro, despertou a pergunta: iriam na casa de um deles e fariam “mais do que só beijar" naquela noite mesmo?

Um olhou para outro em silêncio, mas pensamento profundo. Não foi preciso palavras para que um entendessem o sorriso do outro.

“Da próxima vez, então?" Disse Kjell.

“Talvez…" Respondeu Inge, com um sorriso provocante. “Mas, só se você se comportar."

“Heh, ok." O caribu puxou o outro homem pela cintura e suspirou no seu rosto. “Posso ganhar um selinho pra viagem, pelo menos?"

Um pensamento ardiloso passou pela cabeça do alce quando ouviu aquele apelo. “Tá."

Kjell liberou a boca dele da echarpe e se posicionou para receber outro beijo selvagem. E ele recebeu uma leve bitoca na bochecha direita no lugar.

Quando ia protestar, Inge já tinha se afastado. A última coisa dele que viu naquela noite, foi sua língua tentadora apontando para ele. Com um risinho, ele seguiu seu caminho para casa na segurança de que ele teria mais chances de dar o troco nele por isso.